19 de maio de 2010

Apontamentos sobre a história rotária (Parte 3)

Também a interface de Rotary com movimentos religiosos foi marcada por grandes contradições, com inevitáveis repercussões internas. As duas acções anti-Rotary, uma de origem religiosa e outra de origem política, que não tiveram uma base comum visível mas que coincidiram no tempo, pelo menos numa prolongada fase, foram potenciadoras uma da outra, obrigando o movimento rotário a fazer várias concessões significativas de natureza administrativa.

É principalmente conhecido o conflito havido com a Igreja Católica(1), totalmente ultrapassado já a nível institucional mas ainda latente nalgumas comunidades mais restritas ou nalgumas mentes mais conservadoras. As primeiras reacções católicas ao movimento rotário não surgiram, como normalmente se afirma, no espaço europeu mas sim, na América Latina, onde a filosofia pragmática rotária foi identificada com os conceitos maçónicos e as correntes marxistas. Datam de 1927 as primeiras condenações públicas na América Latina(2) e os primeiros pedidos para que a Secretaria de Estado do Vaticano se debruçasse sobre o movimento e o analisasse(3). A expansão de Rotary, feita anteriormente em países de predominância protestante e de língua inglesa, não tinha, até então, preocupado o Vaticano. É só a partir de 1928 que o Osservatore Romano e a Civiltà Cattolica, dos jesuítas italianos, começaram a publicar extensas análises críticas do movimento, tentando demonstrar a similitude de conceitos e objectivos entre o Rotary e a Maçonaria(4). Ao mesmo tempo, mas na esfera política, a imprensa fascista italiana iniciava os seus ataques contra o movimento, por este defender uma certa forma de solidariedade internacional, contrária à sua visão ultra nacionalista, que combatiam usando o argumento maçónico, e, também, por ser constituído por reconhecidos elementos da alta burguesia e da aristocracia italianas(5), classes que, numa fase intermédia, largamente apoiaram o movimento fascista mas que eram somente toleradas por ele(6).

Também em Espanha a campanha anti-rotária foi intensa e ficou célebre a carta pastoral do Arcebispo de Toledo, Cardeal Segura, divulgada internacionalmente, nos começos de 1929, pelo Osservatore Romano(7), em que todos os católicos eram solicitados a não pertencer nem apoiar Rotary, assimilando o rotarismo ao teosofismo, ao freudismo e à maçonaria. Nesse mesmo ano, durante o Congresso Internacional de Rotary, em Dallas, com Rotários de 48 países e de diferentes religiões, num esforço dialogante notável, são introduzidas modificações nos seus Estatutos de modo a não deixar espaço para novas acusações por parte do Vaticano. Que se manteve silencioso durante os anos seguintes mas permitiu que, a nível das dioceses, o ataque persistisse, rejeitando, sistematicamente, contactos a alto nível com Rotary. Durante esse período, que podemos marcar entre 1930 e 1950, o comportamento dos católicos foi divergente indo desde uma violenta oposição a Rotary até à desassombrada participação de padres católicos latino-americanos como membros de pleno direito de Clubes, a exemplo do que já vinha acontecendo, há muito, nos Estados Unidos da América onde a Igreja Católica, confrontada com as outras Igrejas Protestantes, tinha atitudes de maior independência frente ao Vaticano. Depois do trágico interregno de Rotary, na maioria do território continental europeu, durante o conflito mundial, e quando os Clubes começaram a instalar-se ou reinstalar-se, inesperadamente, em 1951, o Vaticano tornou a atacar Rotary, por Decreto do Santo Ofício(8), o que agora, sob uma perspectiva de distanciamento histórico, parece não ter sido mais do que uma das várias últimas tentativas das forças conservadoras do Vaticano para neutralizar as várias formas de modernização comportamental que dentro dos seus muros já avançava, prenunciando o aggiornamento. Foi evidente a não alargada receptividade a este novo documento e começou, a partir daí, uma lenta correcção das críticas oficiais e uma abertura das autoridades locais católicas à participação em reuniões rotárias. A visita do Arcebispo de Milão, Cardeal Montini, mais tarde Papa Paulo VI, à Sede do Rotary Club de Milão, em 1957(9), e a audiência que o Papa João XXIII concedeu ao Presidente de Rotary International Clifford A. Randall, no ano rotário de 1958-59, foram os marcos históricos da anulação da atitude oficial anti-rotária por parte da Igreja Católica. A partir daí as relações nunca mais deixaram de se aprofundar, com uma perfeita compreensão multilateral das respectivas posições, havendo vários padres católicos, membros representativos de Rotary Clubs(10), que têm vindo a desempenhar importantes funções a nível de clubes(11) e a nível distrital, nomeadamente como Governadores de Distrito(12), e outros como membros honorários de Clubes e Companheiros Paul Harris(13).

Essas contradições, ultrapassadas nos mundos latino e anglo saxónico, surgem agora mais intensas no mundo islâmico. Se compararmos um mapa dos estados de religião muçulmana e um mapa da actual implantação rotária vemos que o movimento não está ali significativamente representado... São conhecidas as dificuldades de implantação, e de manutenção activa, de Rotary nos países muçulmanos, sobretudo, nos mais extremistas, já que o movimento rotário é olhado como uma intromissão moral e ética numa sociedade que, pelos seus próprios princípios(14), e pelo que sofreu de domínio ocidental e cristão durante centenas de anos(15,16), não sendo intolerante tende a ser redutora, estando, na prática, muito fechada à coexistência cultural(17) com outros. Exige se um esforço, enorme e paciente, compreensivo e cauteloso, para que os valores rotários possam ser compreendidos, e aceites, na sua mais profunda universalidade! É fundamental que saibamos compreender as actuais reacções anti rotárias, em parte dos estados islâmicos, até porque tivemos idênticas nos nossos estados... Devemos evitar, fundamentalmente, que cidadãos desses países que se devotam à causa rotária possam sofrer por isso!(18)

Saibamos todos ter a sabedoria de assim o entender, saibamos todos ter o engenho e a arte para servir a causa da paz que é a causa da guerra contra a desumanidade, contra a fome, contra a doença!

(um texto de 1992 revisto em 2008)

Armando Teixeira Carneiro (PGD 1970, 1986-87)

(1) Veja-se o trabalho do já citado Prof Ernesto Cianci, membro do Rotary Club de Roma: Il Rotary e il Cattolicesimo apresentado durante a 8ª Conferência do Distrito 207, em 11 de Maio de 1985, em Arezzo, Itália, era então Governador Umberto Laffi, Director de RI em 1989-91. E, leia-se também o extenso e importante trabalho do famoso rotário italiano Omero Ranelletti: Il Rotary e la Chiesa Cattolica, com várias edições na excelente revista rotária italiana de ensaios Realtà Nuova.
(2) Cânone diocesano de San Miguel, República de San Salvador.
(3) Da Venezuela.
(4) Osservatore Romano de 15 de Fevereiro de 1928 e Civiltà Cattolica de 16 de Junho e 21 de Julho de 1928.
(5) O que era verdade. Grande parte da Casa Real Italiana estava ligada ao Rotary italiano, assim como os elementos mais destacados da alta burguesia e alguns dos maiores valores da inteligentsia italiana.
(6) E que, ao longo da história do regime e nos períodos em que o apoio das massas populares se tornava mais necessário, várias vezes foram alvo de intensos ataques, sobretudo pela ala mais extremista e ideológica do movimento, que foi a que se manteve activa. Mesmo após a demissão de Mussolini pelo Rei Vittorio Emanuelle III, a 25 de Julho de 1943, e sobretudo após a criação da Republica Sociale Italiana, em Setembro de 1943, que se manteve, sob quase total controlo alemão, durante ainda 600 trágicos dias.
(7) Osservatore Romano de 23 de Janeiro de 1929.
(8) Osservatore Romano de 11 de Janeiro de 1951.
(9) Exactamente em 13 de Novembro de 1957, tendo dito, a certo passo:...desejando dizer que segui sempre com grande interesse, à mistura, da minha parte, de alguma ignorância e alguma reserva, a actividade dos Rotary Clubs. Agora, limito-me a dizer que me sinto muito honrado e ainda muito satisfeito por estar hoje entre vós...
(10) Como, entre muitos, Dom Francisco Nunes Teixeira, Bispo Resignatário de Quelimane, membro do Rotary Club de Estarreja, de quem fui amigo.
(11) Vários padres católicos já assumiram funções de Presidente em diversos Clubes portugueses, como são os casos da Figueira da Foz, Monção, Felgueiras, etc..
(12) Em Itália e em França.
(13) Como Dom Manuel Trindade, Bispo Resignatário de Aveiro.
(14) O islamismo tem que ser entendido, mais do que qualquer outra religião, como um fenómeno integrado de natureza religiosa, social, cultural, histórica e política.
(15) E soviético, no século XX, nalguns estados da URSS, agora desmantelada, e no Afeganistão.
(16) Amin Maalouf, no seu notável livro As Cruzadas vistas pelos Árabes, refere que a queda e saque de Jerusalém, no tempo das cruzadas, deixou, no mundo islâmico, sequelas para mais de mil anos...
(17) Mas não à coexistência comercial e também à económica, esta com um sentido expansionista pouco percebido, ou tolerado, nas economias ocidentais.
(18) No período inicial do regime de Khomeini, no Irão, vários rotários foram perseguidos e a simples situação de receber correspondência rotária permitia as mais incríveis e perigosas conotações...