16 de dezembro de 2009

Apontamentos sobre a história rotária (Parte 1)

Num dos seus mais conhecidos livros, Vergílio Ferreira escreve, a determinado passo: Como os ponteiros dum relógio ou um barco à distância, a vida imobiliza-se-nos para sempre em cada instante em que estamos. Mas no instante seguinte reparamos que ainda estamos imobilizados mas já noutro sítio(1). Também a nós, Rotários, falta, frequentemente, a visão dinâmica e abrangente do nosso movimento O Rotary é sempre o Rotary mas é sempre diferente, não nos seus ideais e objectivos, mas na sua prática e na sua implantação no mundo.
O objectivo final de Rotary, conscientemente ou não assumido, é a paz e a compreensão mundial. Como tenho várias vezes dito, e escrito, aproximamo-nos dele assimptoticamente através dos múltiplos objectivos intermédios do serviço às comunidades envolventes, consolidando a nossa prática por uma atitude comportamental colectiva a que chamamos de companheirismo.
São esses objectivos, e é esse comportamento, que tem permitido ultrapassar barreiras(2), estender a mão(3), tomar a consciência de que a humanidade é uma só(4) e que Rotary leva esperança(5) vivendo-o com fé e entusiasmo(6) na perspectiva pessoal de se olhar mais além de si mesmo(7), como alguns dos lemas anuais de Rotary nos motivam.
A história percorre grandes espirais com sistemáticas resoluções dialécticas que criam novas bases de conflito, de novo tendencialmente resolvidas pela oposição dos contrários(8).
Ao entrar-se na última década do século XX, assistimos a uma situação inesperada, e aparentemente inexplicável, da aceleração dos fenómenos sócio económicos. Infelizmente, no curto prazo, parece cada vez mais inevitável que novas contradições venham a criar novas situações de conflitualidade e, curiosamente, em aspectos tidos como resolvidos, ou fortemente atenuados, pela evolução histórica da Europa a partir do final da 1ª Guerra Mundial e, sobretudo, após a 2ª Guerra Mundial. Os problemas inter-regionais das várias actuais repúblicas resultantes da fragmentação da URSS, os choques de fundo religioso em zonas alargadas do Médio Oriente, o relançamento de teses revanchistas islâmicas, sublimadas no fundamentalismo islâmico, retomam situações semelhantes a outras que a história registou em épocas e contextos distintos.
A Ásia, aparentemente estável (pelo distanciamento físico e pela dissemelhança de conceitos com que a analisamos), virá a ser confrontada com situações de conflito pela emergência das novas China e Índia.
A nível do Mundo Islâmico o dogmatismo extremista das distintas posições religiosas, que subsistem em cada zona, não permite estabelecer cenários optimistas para as próximas décadas. Seja nos países islâmicos ou nas alargadas colónias islâmicas espalhadas pelo mundo inteiro.
A passagem do modelo bipolar geopolítico USA-URSS a um modelo multipolar sequente à globalização e à crise de 2008-2009, criará novas fronteiras de conflito, umas físicas, outras virtuais.
Provavelmente, antes do domínio asiático iremos assistir a dolorosas confrontações entre o mundo de base cristã e o mundo de base islâmica., num remake dos confrontos do século X a XV.
Qual a posição de Rotary International nesta conjuntura planetária? Qual o seu papel no mundo actual?
Costumo dizer que existe um paradoxo cartográfico rotário. Se folhearmos atlas geográficos de várias nacionalidades, sobretudo a nível de grandes potências, notaremos, para além de maiores ou menores divergências, em termos de fronteiras, o uso de meridianos centrais diferentes. O que ainda é mais notável se fizermos uma comparação de cartografia estratégica. Os mapas europeus têm como referencial o equador e o meridiano 0°, chamado meridiano de Greenwich(9), enquanto os mapas norte americanos usam o meridiano 80°W, os mapas chineses o meridiano 150°E. Quanto aos mapas russos (anteriores ou posteriores a 1917) usam um referencial bem diferente, sem uso do equador e dum determinado meridiano para coordenadas cartesianas, com um ponto central na latitude 90°N(10). Todos com um objectivo: o de colocar essa nação como que sendo a referência, o centro do mundo. E aqui encontramos o nosso paradoxo: se quisermos desenhar um mapa estratégico rotário, sem recurso a qualquer um dos acima referidos que, por rotina, usemos, não seremos capazes de escolher um referencial coerente. É que para um rotário, consciente do seu estatuto, qualquer referencial será correcto! Desde que se possa partir dele para servir as comunidades carentes do mundo inteiro! Pode-se dizer que estamos perante um referencial relativo e virtual em que a constante do sistema é o ideal de servir !
Temos que reconhecer que sendo Rotary um corpo de elite orientado para um conjunto de grandes objectivos humanos não deixa, por isso, de conter nele, para além de todas as virtudes, também todos os defeitos dos outros homens. Digamos que o que deverá distinguir um Rotário é o ter essa mesma percepção. E também a consciência de que existem concepções diferentes do mundo. O Homem, mas neste caso específico o Rotário, tem que aprender a fazer o esforço de aceitar que a sua visão pessoal do mundo, a sua Weltanschaung(11), abrangentemente religiosa, política e ideológica, não é única e que deverá aceitar que os outros, igualmente Homens, eventualmente Rotários também, terão as suas diferentes perspectivas, com o mesmo grau de verdade subjectiva. Rotary tem permitido ao Homem dar este passo importante mas que tem passado desapercebido mesmo entre Rotários: o assumir da igualdade metodológica entre posições ideológicas distintas. Não a convivência sob uma relação de dependência mas a convivência em pleno plano de igualdade!
Há que promover um novo conceito que chamaremos de pax rotaria, como via superestrutural, global e efectivamente conducente à compreensão mundial, ao contrário da pax romana, hoje apenas referencial histórico, da pax americana, em sistemática resolução de crises sucessivas, das pax nacional socialista e pax sovietica, de trágicas memórias, ou de qualquer outra que assente na supremacia estática e indiscutível dum modelo sobre todos os outros. E aqui reencontramos as bases iniciais do pragmatismo rotário que, sem elaborações filosóficas, permitiu ajudar a ultrapassar conflitos e ataques.
(1) Pensar, 1992, Lisboa, Bertrand Editora, ISBN 972 25 0670 6.

(2) Lema do Presidente William E. Walk, 1970-71.
(3) Lema do Presidente Clem Renouf, 1978-79.
(4) Lema do Presidente Hiroji Mukasa, 1982-83.
(5) Lema do Presidente MAT Caparas, 1986-87.
(6) Lema do Presidente Paulo Viriato, 1990-91.
(7) Lema do Presidente Rajendra Saboo, 1991 92.
(8) Sem que, no entanto, seja aceitável uma rígida e pseudocientífica teoria de materialismo histórico por se verificar não ser mais do que uma dogmática visão do materialismo dialéctico que, na sua leitura mais isenta, anula qualquer perspectiva dogmática.
(9) O que por si mesmo é uma prova do predomínio existente, em determinada fase histórica, da Europa sobre o resto do mundo.

(10) O Polo Norte.
(11) Ou, se se quiser, num neologismo português: a sua mundividência.
(um texto de 1992 revisto em 2008)
Armando Teixeira Carneiro (PGD 1970, 1986-87)