28 de janeiro de 2010

Apontamentos sobre a história rotária (Parte 2)

Será conveniente fazer um rápido enquadramento histórico do movimento rotário desde os seus primeiros anos. Dum modo simplista, é habitual referir o evoluir de Rotary International a velocidades diferentes, consoante a época, mas sem grandes contradições internas. A realidade foi, e é, porém, outra.
Na interface com a política internacional, os anos 30 e 40 foram paradigmáticos e muito importantes para a comprovação desta tese. Pena é que ainda não tenha sido possível realizar um completo, profundo e descomprometido estudo sobre os Rotary Clubs de então, mau grado alguns excelentes estudos já existentes(1).
O comportamento de muitos rotários, em vários países, foi condicionado pelo meio envolvente de então. A saída compulsiva dos rotários alemães de origem judaica dos Rotary Clubs da Alemanha, a partir de 1933, foi generalizadamente ignorada pelos outros rotários alemães que, na sua maioria, preferiram não enfrentar a situação, ainda que muitos destes tenham, mais tarde, mantido clandestinamente activo, com risco total de suas vidas, o espírito de serviço nalguns dos Clubes, entretanto encerrados, em território do 3º Reich. O desmantelamento, forçadamente voluntário, em 1938, dos Clubes italianos, pressionados pela situação política italiana(2), deixou marcas posteriores no movimento em Itália(3),(4). Fenómenos semelhantes deram se por quase toda a Europa, nomeadamente em Espanha, onde o movimento foi extinto e fez uma longa travessia do deserto até 1977. Também em França foi paradigmático o ocorrido com os Rotary Clubs no período de 1940-44(5).
O espírito de compreensão mundial, no período antes e durante a 2ª Guerra Mundial, foi atenuado sendo, logicamente, orientado para dentro do espaço dos Países Aliados e no espaço fechado de alguns países neutrais(6), onde Rotary se manteve e prestou enormes serviços às comunidades locais, flageladas, directa ou indirectamente, pela guerra, como, aliás, o eram as do outro lado da contenda, dum modo semelhante ao que já havia acontecido durante e após a 1ª Guerra Mundial.
Podemos dizer então que, nessa fase, no persistente, ainda que falso e resolúvel, dilema de muitos rotários, entre dar prioridade aos serviços à comunidade local ou aos serviços à comunidade internacional, prevaleceu a perspectiva local ou, no máximo, regional. O que foi compreensível. Em período de conflito há valores que tendem a ser lateralizados como é o caso do respeito pela dignidade humana(7).
A participação activa de rotários na formação e estabelecimento das Nações Unidas(8), e da sua organização específica UNESCO, na redacção da Declaração Universal dos Direitos do Homem(9) e noutras inúmeras acções posteriores ao final da 2ª Guerra Mundial, foram outros exemplos do relançamento do espírito de solidariedade internacional e do respeito pela dignidade humana através de vozes rotárias especialmente colocadas.
Em Portugal foi possível manter activo o movimento durante o conflito, com relevantes serviços(10), sem se ter, no entanto, participado nas acções internacionais pós guerra(11). Também o período imediatamente sequente à revolução do 25 de Abril de 1974 deixou provas de comportamentos diversos. O Rotary que, em Portugal, até poucos anos antes, era liminarmente consentido mas tido como maçónico e anticlerical, passou, na época, quase instantaneamente, a ser tido, por certos grupos fazedores de opinião pública(12), como um reduto burguês e capitalista. E assistimos ao abandono do movimento por alguns que ficaram afectados pelo choque revolucionário e por outros que aceitando como verdadeiro o novo ápodo, ou nele não se reconheceram ou dele se quiseram demarcar por oportunismo conjuntural. E as dificuldades de vária ordem que afectaram muitas pessoas e comunidades fizeram concentrar a maioria dos serviços à comunidade em espaços muito limitados à volta dos Rotary Clubs. E mesmo o posicionamento de muitos Rotários portugueses em actividades interpaíses mostrava-se predominantemente receptor e só complementarmente dador. O que foi também perfeitamente compreensível durante uns anos, mas que, agora, já não tem justificação, ainda que tal posicionamento persista pela parte de alguns...
(1) Para quando um maior esforço de investigação histórica dum movimento que se aproxima dos 100 anos de existência? Citem-se alguns, escassos, bons exemplos:

   The Golden Wheel, David Shelley Nicholl, Plymouth, England, 1984, Macdonald & Evans Ltd;
   Rotary nella storia de Italia, Ernesto Cianci, Milão, Italia, 1983, Mursia SpA.
(2) Mas sob uma aparência de decisão voluntária já que tal foi, então, decidido pelo próprio Conselho Rotário Italiano, afirmando se no documento emergente que os objectivos do movimento (rotário) em Itália encontram a sua melhor expressão e mais eficiente realização no programa e política do regime (fascista) e no tenaz e perspicaz trabalho d'Il Duce, em Roma, na tarde de 14 de Novembro de 1938.
(3) O movimento relança se em Itália logo após a queda progressiva do território em mãos das tropas anglo americanas. O primeiro Clube a reactivar se foi o de Messina, na Sicília, em 18 de Maio de 1944, seguido por muitos outros,ainda que Rotary International só tivesse formalmente readmitido a Itália no movimento em 1946.
(4) A Conferência de Pallanza, realizada em 14 e 15 de Setembro de 1946, foi a base da reformulação de Rotary em Itália. Entre vários aspectos desaparecia o anteriormente denominado Consiglio Nazionale e discutiu se intensamente o fenómeno da democratização do Rotary em Itália, com as lógicas contradições do período pós guerra italiano, cheio de conflitos sociais e políticos, onde se aceitava que o que se perdesse em excelência individual se ganharia em potência representativa das várias categorias sociais.
(5) Um estudo muito curioso foi realizado no relativo ao comportamento dos membros dos Rotary Clubs franceses, proibidos na zona militarmente ocupada pela Wehrmacht, tolerados, mas quase desactivados, na zona do Governo de Vichy. Tentando avaliar quantos, e muitos foram, que se ligaram à resistência e às FFL do General De Gaulle, e quantos, e poucos foram, os que colaboraram com as tropas ocupantes e com o Governo do Marechal Pétain.
(6) Como foi o caso de Portugal.
(7) Respeito no sentido profundo que Goethe chamou de ehrfurcht.
(8) Na Conferência de San Francisco, Califórnia, em 1945, para redacção da Carta das Nações Unidas, havia rotários em 36 das 50 delegações, além duma Comissão especial consultora de Rotary International.
(9) O seu redactor foi o rotário francês René Cassin, Prémio Nobel da Paz de 1968. A Declaração foi aprovada, numa reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, no Palácio de Chaillot, em Paris, a 10 de Dezembro de 1948.
(10) É um interessante documento histórico o Relatório do Escritório de Zurique de Rotary International, relativo ao ano de 1941, achado, depois da 2ª Guerra Mundial, nos arquivos da polícia fascista italiana, por ter sido, naquela altura, interceptado no trânsito de correio da Suíça para os Estados Unidos, via Itália. Nele, entre várias informações com enorme valor histórico, se refere: ...Os Clubes em Portugal continuam a ser muito activos, especialmente no trabalho de serviços à comunidade e na assistência aos refugiados...
(11) Portugal, como se sabe, pela sua posição de neutralidade durante o conflito, mas, sobretudo, por razões políticas internas, não participou na criação das Nações Unidas, tendo vindo a ser admitido só anos mais tarde.
(12) Opinion makers.
(um texto de 1992 revisto em 2008)
Armando Teixeira Carneiro (PGD 1970, 1986-87)